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Ser(tão) mulher: História de resistência, força e trabalho

Dona Didi, benefiária do projeto, recebeu a equipe da ACB para contar sua história de vida.

Entre os meses de agosto e dezembro, o calor escalda o Semiárido nordestino. As possibilidades de grandes chuvas são remotas. Assim, a água que abastece muitos sertanejos é através de carros-pipa. Os barreiros e as cisternas pequenas não sustentam água o ano todo. Na Chapada do Araripe, a característica do solo, de não reter água na superfície e sua declividade para o lado do estado do Ceará, faz com que suas nascentes estejam mais próximas ao sopé, que no seu topo.

Lá na serra, no topo da Chapada do Araripe, fica o sítio Zabelê, em Nova Olinda, onde mora Francisca Maria da Silva, a dona Didi, de 57 anos. Lá, como outros tantos agricultores e agricultoras, ela convive com problemas de falta d’água. Em sua casa de taipa, ela mora junto com mais seis filhos e vários netos. Ao todo, ela teve 21 filhos, destes, dez estão vivos. Cinco homens e cinco mulheres. O mais velho, mora em Araguari, Minas Gerais. Apesar de manter contato por telefone, Dona Didi não o vê há 10 anos.

Ainda que dona Didi tenha uma cisterna de cinco mil litros, que ganhou do Governo Municipal, ela não consegue abastecer o consumo humano e muito menos a irrigação de sua roça. Então, a agricultora produz alimentos que não precisam de tanta água, como a mandioca. “A galinha a gente bota água para elas beber e elas não tomam banho igual ao porco, né? O porco a gente bota um pouco de água para tomar banho, mas não é todo por não tem, né? E a gente do mesmo jeito. Sobrevivo com o tempo quente, sem água, porque não tem como”, diz. Água só quando chove ou dona Didi vai na prefeitura e exige uma carrada para sua família. Às vezes ela pede aos vizinhos ou vai buscar no barreiro.

No entanto, a agricultora conheceu o projeto Jovens Familiares Produzindo no Cariri, patrocinado pela Petrobras, que chegou na sua comunidade. Dona Didi participou de todas as capacitações. Com isso, foi atendida com a construção de uma cisterna Chapéu de Padre Cícero, que possui capacidade de armazenamento para 52 mil litros de água.

A agricultora já projeta a produção que irá ter com a cisterna pronta, apesar de que, a água só chegará no próximo inverno, ano que vem. “O que tiver ao meu alcance da produção, eu faria. Eu faço sim. Eu tenho certeza que muito não, mas pouco eu vou produzir com a água. Aos pouquinhos a gente vai, porque a pessoa de saúde tem como fazer uma produção maior, né? Mas uma pessoa que nem eu, que tem a saúde que minha saúde é pouca, eu vou produzir mais pouco”, conta, dona Didi.

A esperança de melhorar suas condições de vida vem da ajuda de suas filhas, Geneva e Ana Cristina. No entanto, dona Didi reconhece que é muito mais difícil, pois as mulheres trabalham mais que os homens. “Sempre é mais e mais cansativo, porque a gente vai para a roça trabalhar e vai para casa trabalhar, também, para comer. Aí vai lavar um prato, lavar uma roupa, varrer uma casa e fazer de tudo, né? O serviço de mulher ele nunca acaba. O homem ele vai para a roça, passa o dia limpando, quando vai para casa, ele deixou feito, e não vai refazer aquilo que já feito. Nós não. Nós estamos na cozinha, lava uns pratos, faz tudo e sai. Quando nós volta está a mesma coisa, né?”.

Dona Didi, como muitas agricultoras, começou a trabalhar desde criança. Sua mãe, Virgínia, levava ela junto para roça, ainda bebê. Lá, armava uma rede debaixo de uma árvore e colocava a pequena Francisca. “Comecei a caminhar dentro da roça, né? Topando nos tocos e caindo. Quando eu acordava ela vinha. Acho que comecei a trabalhar com uns quatro anos, cobrindo cova de mandioca. Se eu estava dentro da roça com minha mãe, com certeza eu fiz”.

Mesmo com tanto trabalho e determinação, a renda da família de dona Didi é pouca. Na sua casa, a renda vem do bolsa família e da aposentaria dela. “Mas para o custo de vida é pouco. Se fosse dois aposentando, rendia mais um pouquinho. Mas só uma pessoa para substituir de tudo, é pouco”, afirma a agricultora. Seu marido, Sebastião José da Silva, de 59 anos, mora próximo a ela, mas Didi conta que é difícil vê-lo. “Ele gosta de viver é só. Só sobrevive assim, só”. Mesmo assim, seu companheiro ajuda um pouco.

Com as dificuldades para sustentar a família sozinha, dona Didi procurou outras formas de tirar a renda, conseguir o pão de cada dia. Há 21 anos, ela teve a ideia de comprar uma dúzia de calcinhas e vender na romaria de Juazeiro do Norte. Assim, ela deu início uma trajetória de viagens pelo Nordeste, vendendo miudezas. Todas as viagens foram feitas através de carona, sobrevivendo da ajuda das pessoas. “Onde eu chegava, vendia aquelas coisinhas e quando acabava, me sentava e pedia esmola. Os filhos ficavam em casa mais o pai. Eu ia sozinha. Eu fui para Bom Jesus da Lapa, São Luís do Maranhão, Recife, Santa Cruz de Malta, Canindé, Fortaleza”.

Cisterna Chapéu de Pe. Cícero em construção

Essa batalha pelo mundo, longe de casa, ela ainda faz hoje. Dona Didi passa quinze dias, um mês viajando. Já chegou a passar três meses. Com a ajuda, consegue ligar para a família e dar notícias. Mesmo o marido não gostando, no início, ela relutava e seguia. “Se ele achasse ruim azar dele. Se o que ele faz não dava para sustentar a família toda. Então, se ele achar ruim, eu vou, se ele não achar, eu vou. É desse jeito”.

Tudo que apura viajando dona Didi guarda em um saquinho plástico e traz para casa. Sempre que precisava se alimentar, ela pede. O café, o almoço, a merenda. “Seu eu fosse gastar, eu não levo dinheiro para comprar a feira para minha família, eu não levo dinheiro para pagar uma energia ou para pagar uma carrada d’água. Então, vou pedir”. Ela diz que nunca chegou a receber um “não”, quando pediu ajuda. “Eu também sou desse jeito na minha casa. Mesmo se esteja boa ou fraca, mas pode chegar um aqui e pedir o pão de cada dia, porque se for para comer o que for na panela, se eu não tiver comido, eu dou para ele comer”, diz a agricultora.

Seu neto, Tcharlyson, de quatro anos.

Apesar de otimista, dona Didi reconhece que era muito difícil se manter longe de casa, pois ela, de forma alguma, gastava o dinheiro que conseguiu nas vendas ou pedindo. Guardava sempre para levar para casa. Assim, para tomar banho ela evitava os banheiros pagos. Deixava para a noite. Com o movimento de pessoas menor, procurava algum chafariz nas praças públicas e, ali mesmo, se banhava. “Ficava só de calcinha e sutiã e tomava banho no chafariz. Estava nem aí, num estava vendo ninguém, podia subir, podia descer, não estava ninguém”, conta Didi. Na hora de dormir ela procurava alguma barraca dos camelôs ou debaixo das portas. “Eu ia alugar uma coisa para mim dormir se eu não tinha condições? Se eu já estava pedindo a quem tinha, né?”, diz.

Com a saudade de casa, dona Didi começou a cantar versos, que ela mesmo compunha e guarda somente na memória. Cada canção, ela faz questão de explicar. “Eu estava no Juazeiro e choveu uma chuva. Mas era tanta água. Aí me lembrei da cama de casa. Me deu frio. Aí, mais que depressa, peguei minha blusa e vesti. Umas três horas da tarde. Era no inverno. Aquela saudade de casa. Aí, na minha memória veio no pensamento:

“A chuva está chovendo/ água correndo pelo chão/ Meu amor está distante/ Me deixou na solidão. / A chuva está chovendo / E eu estou sentindo frio / Vendo a dama da noite / E o calor da melodia” “Vem amor, que estou sentindo frio / Nossa cama está vazia / Reclama noite e dia/ A falta de você aqui”

“Eu tava longe. Eu tava com frio, a cama tava vazia. Estava só ele. Do mesmo jeito era eu, lá. Então eu fiz a música. Envolvi a chuva, envolvi o amor. Envolvi tudo”, explica Didi, que começou a cantar depois de muitos anos, quando já havia se tornado avó, “nas andadas pelo mundo, sentindo a falta de alguma coisa”, como ela gosta de contar.

Ela ainda tem outras canções e compõe a partir de suas vivências. Nenhuma está escrita. Todas estão decoradas. Didi canta sobre sua ida à roça e também, sobre o banho de mar. “Aqui não foi letra de ninguém, foi só meu pensamento”, faz questão de deixar claro a agricultora.

Mesmo com as dificuldades, ela conseguiu estudar e terminar a oitava série. Ela acredita que a escola ajudou muito no seu talento de poeta e compositora. A primeira vez que pisou em sala de aula foi aos 11 anos e terminou o ensino fundamental aos 38 anos. Apesar de seu marido não gostar que ela estudasse. “Quando eu me casei eu só estava com o quarto ano. Ele brigava. Me matriculei. Uma semana eu ia para a escola ele não dizia nada. Aí na outra ele estava brigando e eu parava. Quando parava de brigar eu arrochava de novo”.

Assim, todas as noites ela ia para a escola. Segundo suas contas, foram 12 professores diferentes que ensinaram para ela. “Se eu pudesse eu não saia de dentro de um colégio, mas eu não posso”, conta a agricultora. Segundo Didi, ela não se arrepende do tempo que estudou e tem esperança que estas “poucas letras que aprendeu”, como ela classifica, vai um dia ajuda-la. O exemplo que ela gosta de contar é o de Cora Coralina, escritora e poetisa goiana, que publicou seu primeiro livro de poesias aos 76 anos. “Um dia vai me ajudar, mais cedo ou mais tarde. Por que não eu? Só porque estou com 57 anos eu não vou conseguir? Eu consigo, Deus quer”.

Com essa garra e determinação, dona Didi acredita que sua batalha está só começando. A chegada da cisterna é mais uma esperança de trabalho e de ver sua roça verde, no próximo ano. “Eu nunca deixei de trabalhar e nem deixo. Só deixo de trabalhar quando não caminho mais. Mas nem que seja um pouquinho eu tenho que fazer, porque o destino pede”. Por fim, dona Didi se despede prometendo cantar uma nova música, desta vez sobre essa conversa. “Por ora, está bom, mas depois quando você vier aqui de novo, nós vamos conversar, nós vamos rir e eu vou cantar para você. Através da nossa história de hoje, vou fazer preu cantar para você”.

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